No dia 15 de agosto estivemos em Cachoeira para participar da Festa da Irmandade da Boa Morte. Formamos um grupo com Cláudio Rebello, Maria Cristina Cunha, Rives, Borges, Gibson e Isabela. Foi um momento extremamente rico do ponto de vista cultural e religioso.
Ancestralidade Africana
A
Irmandade da Boa Morte é uma confraria católica de mulheres negras e mestiças
que descendem e representam a ancestralidade dos povos africanos escravizados,
e libertos, no Recôncavo da Bahia. Com o apogeu da lavoura de cana de açúcar, o
trabalho escravo teve grande influência no desenvolvimento social e econômico
da região. Daí a presença muito forte do negro em Cachoeira, o que contribuiu
para difundir o sincretismo religioso em todas as áreas.
A festa de Nossa Senhora da Boa Morte é um
exemplo vivo da força e influência marcantes da cultura africana, miscigenada
às tradições católicas. A festa acontece sempre durante a primeira quinzena de
agosto e atrai pelo mistério e força, transmitidos de várias formas, tanto
através da indumentária especial, utilizada pelas “irmãs”, como também pelos
rituais secretos que são realizados com muita devoção.
O traje de gala característico das “irmãs” é marcado pelo preto, branco e
vermelho. A saia é preta e plissada, o camizu (ou camisa de crioula) é todo
bordado em richelieu, engomado e branco. É usada outra blusa para compor o
traje, além do pano da costa, em veludo preto, com forro de cetim vermelho, e o
torço (ojá) branco comum, também bordado em richelieu.
Rituais e Mistério
O culto é mantido com muito respeito e
mistério. A programação católica é composta de missas, confissões, sentinela de
Nossa Senhora da Boa Morte, realizada na Casa da Boa Morte, e três procissões
nas principais ruas da cidade. Os rituais africanos são realizados de forma
recatada, e os preceitos começam no início do mês de agosto, quando fazem uma
limpeza de corpo e alma, confessando-se na igreja Matriz de Nossa Senhora do
Rosário do Porto da Cachoeira e tomando um banho de purificação, seguindo o
ritual de seus ancestrais.
Fazem parte ainda da programação
religiosa missas pelas irmãs falecidas, cortejo com Nossa Senhora da Boa Morte,
sentinela na Igreja Matriz, missa de corpo presente, procissão de Nossa Senhora
da Boa Morte, missa solene da Ressurreição.
A parte profana da festa tem samba de
roda e ceias na casa da Irmandade. Hoje, a Confraria, formada exclusivamente
por mulheres negras com mais de 50 anos, funciona em um conjunto de quatro
sobrados do século XVIII, restaurados pelo Ipac – Instituto do Patrimônio Artístico
e Cultural, à Rua 13 de maio/Largo da Ajuda. Na sede estão peças da Irmandade,
incluindo a imagem de Nossa Senhora da Boa Morte.
Resistência cultural
A Irmandade da Boa Morte, entidade que
vive em amor a Maria, é uma sociedade fechada, fiel zeladora das tradições,
enraizadas em suas origens culturais. A Irmandade guarda ainda os traços fortes
de sua origem, como a admissão exclusiva de mulheres idosas e negras em seus
quadros, tradição que continua seguindo religiosamente. Nesse espírito de ritos
e manifestações, as irmãs mantêm a tradição distante de possíveis modificações
em sua estrutura, há 235 anos.
O quadro da Irmandade, que já contou com
a participação de cerca de 200 mulheres, segundo depoimento do administrador da
festa, Walmir Pereira, reúne hoje 23 irmãs e quatro noviças, provenientes tanto
de Cachoeira quanto de outras cidades do Recôncavo, como São Félix, Maragojipe,
Muritiba, Santo Amaro e até mesmo de Salvador.
Para integrar ao grupo é preciso, antes
de qualquer outra coisa, muita devoção a Nossa Senhora da Boa Morte. Geralmente
as mulheres devem estar na faixa acima de 50 anos porque, a partir dessa idade,
segundo as irmãs, as mulheres começam a perder interesse material, sexual,
fortalecendo o espiritual e a dedicação de corpo e alma à devoção.
Nobreza e Dignidade
Atualmente, entre os poucos pertences
das irmãs restam os trajes com que participam da festa, um motivo de grande
orgulho. Quando vestem sua roupa de gala ou a indumentária de baiana típica, as
negras desfilam pelas ruas de Cachoeira, com nobreza e dignidade. O traje de
baiana, todo branco (camizu de richelieu, bata bem larga em tecido fino e
trabalhada, saias bem armadas, chinelas em couro branco, ojá de cabeça
engomado, com detalhes de richelieu e pano da costa bordado), é usado durante o
cortejo de Nossa Senhora, na sexta-feira e na ceia branca. Nesse dia, elas não
usam qualquer joia ou adereço, somente as guias dos orixás e o traje branco,
que no Candomblé significa luto. É um dia de resignação e respeito em
reverência à Senhora Morta.